Como o cérebro muda a partir dos 70 anos e quais estratégias ajudam a se adaptar

“Confundir envelhecimento com doença é um erro que gera medo desnecessário”, explica a doutora Nazareth Castellanos. Essas transformações são normais, afirma ela, e podem ser encaradas como um desafio e não como uma fatalidade que nos paralisa

“Há uma manhã em que você acorda e percebe que seu corpo responde de maneira diferente. Talvez seja o tempo que você leva para encontrar uma palavra ou a maneira como seus dedos hesitam sobre as teclas do telefone. Talvez seja apenas uma sensação difusa, um reconhecimento silencioso de que algo mudou, não de repente, mas como quem observa o mar, retirando-se lentamente da areia. O cérebro aos setenta anos não é o mesmo que aos quarenta, nem aos cinquenta. E isso não é uma tragédia, é uma verdade biológica que merece ser compreendida com serenidade e curiosidade, porque dentro dessas mudanças existe também uma forma de sabedoria que só o tempo pode esculpir”, explica a doutora Nazareth Castellanos no seu site do YouTube Cerebro y Alma.

Castellanos é uma física e neurocientista espanhola, reconhecida pela sua investigação sobre a conexão cérebro-corpo, respiração e meditação, e pelo seu trabalho de divulgação científica através de livros como “El espejo del cerebro” (O espelho do cérebro) e “Neurociencia del cuerpo” (Neurociência do corpo). Ela dirige a investigação no Nirakara-Lab e explora como a atenção plena e a atividade física impactam a saúde corporal e emocional, conectando a ciência com o bem-estar humano. Há mais de 20 anos dedica-se à investigação científica, com foco na plasticidade cerebral, atenção e regulação emocional.

Num podcast, expôs os fenómenos que ocorrem no nosso cérebro a partir dos 70 anos e explicou como estes podem ser encarados como um desafio e não como uma fatalidade que nos paralisa.

Redução do volume cerebral

Trata-se de um processo gradual que começa décadas antes e se acelera após os setenta anos. O córtex pré-frontal, a região que nos permite planear, tomar decisões complexas, controlar impulsos e manter a atenção sustentada, é uma das áreas mais afetadas. A substância branca, que são as fibras nervosas envoltas em mielina e que conectam diferentes regiões do cérebro, também sofre alterações. A mielina, essa camada protetora que permite que os impulsos elétricos viajem rapidamente entre os neurónios, começa a deteriorar-se.O cérebro e as suas redes neuronais (Imagem ilustrativa Infobae)

É necessário mais tempo para processar uma informação nova, uma conversa rápida torna-se difícil de acompanhar, a palavra que queremos dizer está na ponta da língua, mas não chega. «Não é falta de inteligência, é uma mudança na velocidade de processamento», afirma a especialista.

Depois dos 70 anos, o hipocampo começa a funcionar de maneira diferente. Não perde toda a capacidade de registrar, mas se torna mais seletivo, mais lento… A pessoa pode se lembrar com clareza emocional e sensorial de algo que aconteceu há 50 anos, cada detalhe da luz daquela tarde, o cheiro do jardim, a textura de uma voz. Mas o nome da pessoa que conheceu ontem ou onde deixou as chaves esta manhã parecem dissolver-se como fumo. «Isto acontece porque a consolidação de memórias recentes depende de processos neurobiológicos que se tornam menos eficientes. A neurogênese, a capacidade de gerar novos neurónios no hipocampo, diminui drasticamente», explica Nazareth Castellanos.

A boa notícia é que a memória não depende apenas de novos neurónios, mas da qualidade das conexões entre os neurónios que já existem. E essas conexões, essas sinapses, podem continuar a fortalecer-se através da experiência, da curiosidade, da aprendizagem contínua.

Diminuição na produção de neurotransmissores

Dopamina, serotonina, acetilcolina, essas moléculas que permitem que os neurónios se comuniquem entre si, começam a ser produzidas em quantidades menores. A dopamina, relacionada com a motivação, o prazer e o movimento, diminui especialmente nos circuitos que conectam o córtex pré-frontal com estruturas mais profundas do cérebro. Podemos sentir isso como uma redução na energia, na iniciativa para iniciar novos projetos, na sensação de recompensa.

A acetilcolina, essencial para a atenção e a memória, também diminui, contribuindo para aquela sensação de névoa mental que às vezes surge, como se o pensamento precisasse atravessar uma fina camada de algodão antes de se tornar claro. O cérebro não perde a sua essência, mas precisa de trabalhar de forma diferente, compensar com outras estratégias, apoiar-se noutros recursos. «A plasticidade cerebral, essa capacidade maravilhosa que o cérebro tem de se reorganizar, de criar novas conexões, de aprender e adaptar-se, não desaparece aos setenta anos, mas muda de qualidade», esclarece Castellanos.

A plasticidade é mais lenta, mais seletiva, mas ainda existe. O que muda é o esforço necessário: aprender uma nova língua, dominar uma tecnologia desconhecida, adaptar-se a rotinas diferentes. Tudo isso exige mais tempo, mais repetição, mais paciência. Mas não é impossível. O cérebro continua sendo capaz de crescer, de criar novos caminhos neuronais, especialmente quando a experiência é acompanhada de emoção, de significado pessoal, de curiosidade genuína. O problema é que muitas vezes, nesta idade, nos dizem ou nos convencemos de que não vale a pena tentar, que já é tarde demais, que o esforço não trará resultados. E essa crença por si só limita a plasticidade mais do que qualquer mudança biológica. Não é necessário resignar-se. «O cérebro responde ao que esperamos dele. Se esperamos rigidez, encontraremos rigidez. Se esperamos a possibilidade, mesmo que seja lenta, encontraremos caminhos», afirma esta especialista.

Dificuldades relacionadas com o sono

Há também mudanças na forma como o cérebro regula o sono. O ritmo circadiano, esse relógio interno que nos diz quando dormir e quando acordar, torna-se menos estável. A produção de melatonina, a hormona que induz o sono, diminui. A arquitetura do sono muda. As fases de sono profundo, essenciais para a consolidação da memória e a restauração celular, tornam-se mais curtas e menos frequentes. Podemos acordar várias vezes durante a noite, ter dificuldade em voltar a dormir, sentir que o descanso não é completo… E isso tem consequências diretas no funcionamento diurno do cérebro. A falta de sono profundo afeta a memória, a atenção, o humor, a capacidade de regular as emoções. É um ciclo que pode se tornar vicioso. O cérebro muda, o sono piora, a função cognitiva declina, a ansiedade aumenta, o sono piora ainda mais. Mas compreender isso não é desistir, é encontrar estratégias. Manter horários regulares, criar rituais de descanso, reduzir estímulos antes de dormir, cuidar da luz natural durante o dia.

Mudanças na velocidade de processamento

Esta é talvez uma das mudanças mais evidentes e frustrantes. Não é que se perca a capacidade de compreender ou raciocinar, mas tudo leva mais tempo. Ler um texto complexo, resolver um problema matemático, acompanhar uma conversa com várias pessoas a falar ao mesmo tempo… Tudo isso exige mais esforço e mais tempo.

Mas há algo que compensa essa lentidão: a profundidade. Aos setenta anos, você tem décadas de experiência acumulada, padrões reconhecidos, contextos compreendidos. O que se perde em velocidade, pode-se ganhar em sabedoria, na capacidade de ver conexões que alguém mais jovem não vê, na compreensão matizada das situações.

“A questão é permitir-se esse ritmo diferente, não se comparar com o que você era décadas atrás, mas reconhecer o valor do que você é agora”, explica Castellanos.

Diminuição da capacidade de dividir a atenção

Fazer várias coisas ao mesmo tempo, alternar rapidamente entre tarefas, manter várias informações ativas na mente simultaneamente… Tudo isso se torna mais difícil.

A atenção torna-se mais estreita, mais focada, mas também mais rígida. Isso pode ser compensado com organização, simplificação do ambiente, estratégias externas como listas, alarmes, rotinas previsíveis. “O cérebro aos setenta precisa de apoio, não de julgamento”, afirma Castellanos.

Mudança na intensidade das emoções

Há uma tendência em muitas pessoas de experimentarem maior estabilidade emocional, menos reatividade intensa, uma certa serenidade que vem não da indiferença, mas de uma regulação emocional mais madura. Isso acontece porque a amígdala, a estrutura responsável pelas respostas emocionais rápidas e intensas, torna-se menos reativa. Ao mesmo tempo, o córtex pré-frontal, mesmo com as suas mudanças, mantém a sua capacidade de modular essas respostas. O resultado é que a pessoa pode sentir-se menos impulsiva, menos dominada por emoções repentinas, mais capaz de observar os seus sentimentos com uma distância compassiva.

A vida emocional torna-se mais plana, mais tranquila, mas às vezes também mais monótona. Isso está relacionado com a diminuição da dopamina, com alterações nos circuitos de recompensa. Não é necessariamente depressão, embora possa ser confundida com ela. É uma mudança no tom afetivo, uma transformação na forma como o cérebro processa o prazer e a dor.

Alterações subtis na linguagem

O vocabulário, a compreensão das palavras, a capacidade de entender frases complexas: tudo isso geralmente permanece bem preservado.

Décadas de leitura, conversação e reflexão deixaram uma rede semântica rica e profunda. Mas a recuperação de palavras específicas, especialmente nomes próprios, torna-se mais difícil. A pessoa sabe o que quer dizer, tem a ideia clara na mente, mas a palavra exata não vem. Isso é chamado de fenômeno da ponta da língua e torna-se mais frequente com a idade. Não é Alzheimer, não é demência. É uma dificuldade normal na recuperação lexical. O cérebro tem a informação armazenada, mas o caminho para aceder a ela tornou-se mais estreito, mais lento. «Às vezes, é preciso descrever o conceito com outras palavras», o que «pode ser frustrante, mas também uma oportunidade para desenvolver uma linguagem mais descritiva, mais metafórica, mais criativa», afirma Castellanos.

Alterações na perceção sensorial

Estas afetam diretamente a forma como o cérebro interpreta o mundo. A visão torna-se menos nítida, a audição menos sensível, especialmente para frequências altas. Isso não é apenas um problema dos olhos ou dos ouvidos, é também um problema de processamento cerebral. O córtex visual e o córtex auditivo recebem informações mais pobres, mais ruidosas e precisam trabalhar mais para extrair significado. O cérebro aos setenta anos precisa de estímulos mais claros, mais fortes, mais distintos.

 

Luz adequada, ambientes silenciosos, tempo para processar e também paciência, tanto da pessoa quanto de quem está ao seu redor.

Diminuição da eficiência da barreira hematoencefálica

Essa barreira é uma estrutura de células especializadas que protege o cérebro, impedindo que substâncias tóxicas do sangue entrem no tecido nervoso. Com a idade, essa barreira se torna mais permeável, mais porosa. O cérebro fica mais vulnerável a inflamações, toxinas e processos degenerativos. A inflamação crónica de baixo grau, algo que aumenta com a idade em todo o corpo, também afeta o cérebro. Citocinas inflamatórias, moléculas libertadas pelo sistema imunitário, começam a circular no tecido nervoso, afetando a função neuronal, a plasticidade e a neurogênese.

Cuidar da saúde geral, reduzir a inflamação através da alimentação, do exercício e do sono torna-se ainda mais importante nesta fase da vida. Podemos sentir que é mais difícil começar um projeto, que se procrastina mais, que se distrai facilmente, que se tem dificuldade em manter o foco até ao final de uma tarefa… “Isso não é falta de vontade, é uma mudança real na capacidade do cérebro de coordenar ações complexas. Mas também há estratégias. Dividir tarefas grandes em pequenos passos, usar lembretes externos, criar rotinas que reduzam a necessidade de decisões constantes, simplificar o ambiente para reduzir distrações. O cérebro aos setenta anos pode fazer muitas coisas, mas precisa de estrutura, apoio externo, compaixão interna…”, esclarece Castellanos

Diminuição da memória de trabalho

A capacidade de manter informações ativas na mente enquanto as manipula também diminui. É como se a mesa de trabalho mental se tornasse mais pequena. Mas a memória de longo prazo, especialmente para eventos emocionalmente significativos, pode permanecer surpreendentemente intacta. O cérebro prioriza o que tem carga emocional, o que tem significado, o que marcou a história de cada um. E isso é uma forma de sabedoria.

Mudança na forma como o cérebro processa recompensas e motivação

“O sistema dopaminérgico que nos impulsiona a buscar novidades, a explorar, a sentir prazer com conquistas, torna-se menos responsivo. Isso pode se manifestar como uma redução no entusiasmo, na curiosidade espontânea, na disposição para experimentar coisas novas… Pode-se sentir mais confortável com rotinas conhecidas, menos disposto a sair da zona de conforto”, diz a especialista. “O desafio é encontrar um equilíbrio, respeitar a necessidade de estabilidade e previsibilidade, mas também alimentar a curiosidade, buscar novidades dentro de limites confortáveis, manter o cérebro comprometido com o mundo”.

A capacidade de inibição diminui ou aumenta

Essa capacidade de controlar impulsos, de não dizer ou fazer a primeira coisa que vem à mente, pode tanto melhorar quanto piorar. Em algumas pessoas, há uma maior desinibição, uma tendência a ser mais direto, menos preocupado com convenções sociais, às vezes até rude, sem intenção. Isso acontece porque o córtex pré-frontal, responsável pelo controle inibitório, é menos eficiente. Mas noutras pessoas há um aumento do autocontrolo, uma maturidade emocional que vem da experiência e de uma regulação emocional mais desenvolvida. Não há uma regra única. Cada cérebro envelhece de forma particular, refletindo não só a biologia, mas também a história de vida, as experiências acumuladas, os hábitos mantidos ao longo das décadas.

Aumento do risco de desenvolver patologias neurodegenerativas

O risco aumenta significativamente, mas é importante entender: o envelhecimento normal não é uma doença. As mudanças descritas fazem parte do envelhecimento típico, não são sinais de demência. A demência é uma condição patológica que vai muito além das mudanças normais, que interfere profundamente na autonomia, na capacidade de cuidar de si mesmo, na essência da pessoa… Confundir envelhecimento com doença é um erro que gera medo desnecessário, que faz com que cada esquecimento seja interpretado como o início de uma tragédia.

É fundamental distinguir. Esquecer onde se deixou as chaves é normal. Esquecer para que servem as chaves não é. Ter dificuldade em lembrar um nome é normal. Não reconhecer a própria família não é.

O envelhecimento cerebral não depende apenas da idade cronológica. Depende de décadas, de escolhas, de hábitos, de experiências… A reserva cognitiva é um conceito fundamental. É como se o cérebro acumulasse ao longo da vida uma espécie de poupança neuronal. Quanto mais educação se teve, mais livros se leu, mais idiomas se aprendeu, mais desafios intelectuais se enfrentou, maior é essa reserva.

“Duas pessoas podem ter a mesma quantidade de danos cerebrais, mas aquela com maior reserva cognitiva ainda funciona bem, enquanto a outra já mostra sinais de declínio. Isso não é privilégio, é biologia”, esclarece Castellanos.

O que posso fazer hoje para cuidar deste cérebro que me trouxe até aqui?

“O que posso fazer para honrar a sua história, para apoiar as suas necessidades, para permitir que continue a funcionar da melhor forma possível dentro das suas novas condições?”, questiona esta especialista. “Há também beleza no envelhecimento cerebral. A lentidão pode ser profundidade. A seletividade da memória pode ser sabedoria sobre o que importa. A redução da reatividade emocional pode ser serenidade. A necessidade de simplicidade pode ser clareza. O cérebro aos setenta anos não é um cérebro falho. É um cérebro diferente, com os seus próprios dons, as suas próprias capacidades. E talvez o maior desafio não seja impedir as mudanças, mas aprender a ver o que nasce dentro delas. Então, ao chegar aos 70 anos, o nosso cérebro já passou por décadas de experiência, moldou-se e remodelou-se inúmeras vezes, perdeu neurónios e criou conexões, viveu alegrias e dores, aprendeu e esqueceu e aprendeu novamente. As mudanças que acontecem agora são reais, mensuráveis, inegáveis, mas não são o fim da história. São um novo capítulo, escrito em um ritmo diferente, com palavras diferentes, mas, mesmo assim, cheio de possibilidades.

Cody Life